sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

A voz critica - Ano I, nº 02

Hoje foi dia do dono da voz assistir ao badalado "O jardineiro fiel" (The constant gardener), do diretor brasileiro Fernando Meirelles baseado no livro The constant gardener, do escritor inglês John le Carré. O filme é sensacional, mas é uma porrada no queixo capaz de deixar grogue qualquer um.

Os primeiros dois terços do filme agradam todos os gostos: começa numa quase comédia romântica que vai desaguar numa trama que lembrou ao dono da voz o atormentado Bentinho sofrendo com os olhos de ressaca de Capitu no genial "Dom Casmurro" do Machado de Assis. Daí a história vai para o tema da espionagem e teorias da conspiração, tendo como pano de fundo uma espécie de documentário sobre a corrupção, a miséria e a questão da Aids na África. Nessa hora, quem prestar atenção lembra de "Cidade de Deus" - Fernando Meirelles é perfeito para colocar comunidades que vivem em meio ao caos na tela. E, para terminar, o golpe que nocauteia o público, a demonstração cabal de que os seres humanos podem ser criaturas monstruosas.

Poucas salas ainda exibem a fita. O dono da voz assistiu no Cine Segall, uma salinha de cinema que fica dentro do Museu Lasar Segall e deixa a sensação de que se está na sala da sua casa.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

Sugestão

O dono da voz recomenda veementemente que, da próxima vez que você encontrar alguém de colete vendendo uma revista chamada Ocas", compre um exemplar. Ou mais. Primeiro porque é uma revista de cultura boa e baratinha, R$3,00. E também porque é um dos melhores projetos sociais que o dono da voz já viu. Os vendedores da revista são moradores de rua, e ficam com R$2,00 da venda de cada exemplar. A idéia é ajudar a reestruturar a sua vida por si mesma, sem assistencialismo. Alguns endereços onde você encontrar um vendedor em São Paulo:

- Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro)
- Espaço Unibanco (Rua Augusta)
- Livraria Fnac (Av. Paulista)
- Itaú Cultural (Av. Paulista)
- Largo São Francisco
- Sesc Vila Mariana

Quer saber mais? O site deles é este aqui: www.ocas.org.br

sábado, 3 de dezembro de 2005

A voz critica - Ano I, nº 01

Na quarta-feira, graças aos convites conseguidos pelo seu cunhado que trabalha na Editora Abril (o link fica como retribuição), o dono da voz assistiu à première do filme "Querida Wendy" (Dear Wendy), escrito pelo diretor do sensacional "Dogville" Lars von Trier.

Não chega a ser genial, mas vale a pena assistir. Pelo menos para experimentar a sensação de vazio e atordoamento quando o filme termina - quando perguntam, assim que as luzes se acendem, se você gostou do filme, a resposta mais honesta é sempre "não sei". Porque não dá para digerir assim tão rápido um filme desses.

"Querida Wendy" conta a história de um bando de moleques sem perspectivas na vida. Perfeitos
losers, como os moradores daquela cidadezinha americana os definiriam. Até que eles um sentido para a sua vida: sua paixão por armas. São garotos incapazes de matar uma mosca. Embora andem com as suas armas para cima e para baixo, como se fossem amuletos para dar "apoio moral", recusam-se terminantemente a sequer mostrar a arma a outras pessoas. Mas não são violentos, não querem matar ninguém nem mesmo por autodefesa.

Pena que o filme não foi exibido enquanto estava a discussão do plebiscito do "desarmamento". Assistam e tirem suas conclusões, mas "Querida Wendy" mostra o que acontece quando inofensivos "cidadãos de bem" tem uma arma nas mãos.

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Da semelhança entre pós-graduação e alguns ideais do cristianismo

Dia desses, estava o dono da voz pensando que pós-graduação é quase um ato de fé: há seis anos atrás, ele deu o primeiro passo para ser um cientista, começando um curso na faculdade que não servia para muita coisa além de dar acesso à pós-graduação e, depois, à carreira acadêmica. Dizia-se que era um curso de dez anos: quatro de graduação, mais dois do mestrado e outros quatro de doutorado.

No caminho, ele começou a ver que não era tão simples: muita gente saindo com o diploma de doutor (neste caso, doutor mesmo, título obtido depois de concluído o doutorado strictu sensu), poucas vagas na universidade pública
(nada atratentes pela perspectiva financeira) para absorver essa gente. Nas universidades federais e estaduais dos centros mais desenvolvidos e por isso mesmo com melhores condições de trabalho, a concorrência é brutal: só entram candidatos com um ou mais estágios de pós-doutorado, de preferência no exterior, e muitos artigos publicados. No sistema privado de ensino superior, havia mais oferta de vagas, mas sem a possibilidade de fazer aquilo para o que se treinam os doutores: pesquisa. E a situação foi piorando, porque as instituições privadas passaram a contratar só o mínimo de doutores exigido, preferindo professores com menor qualificação e portanto recebendo salários menores para maximizar o lucro (aplicando aqui as teorias de administração que o dono da voz aprendeu com a irmã).

O resumo da ópera é que são pelo menos 12 anos para conseguir entrar no jogo, 12 anos para depois poder apostar na possiblidade de conseguir um lugar ao sol. É quase um terço da vida economicamente ativa de um brasileiro se considerarmos o tempo e a idade mínimos para a aposentadoria.

Daí que o dono da voz achou que isso parecia a promessa cristã: viva de acordo com os princípios de Cristo, que são excelentes mais quase impossíveis de serem seguidos à risca (o que não quer dizer que não valha a pena tentar...), na esperança de, no futuro, ver a justiça e a paz do Reino de Deus reinando na terra. Escolher o caminho mais difícil sem garantia nenhuma de recompensa.

O dono da voz até acha que vai conseguir. Ou, pelo menos, acredita nisso de vez em quando. Em parte do tempo, dá para fazer ciência pelo amor, pelo sentimento de que é uma atividade com incrível potencial de melhorar o mundo em que vivemos. De vez em quando, a esperança acaba, e só dá para continuar com essa maluquice ser cientista pela fé.

sábado, 22 de outubro de 2005

O assunto da vez

O dono da voz matutou, pensou e repensou em escrever algum depoimento oficial para esta voz falar sobre o referendo. Desistiu: muita gente falando, e muita bobagem sendo dita. Mas eis que surge uma notícia que é melhor do que mil palavras:

Discussão sobre referendo termina em tiros em MG
PAULO PEIXOTO
da Agência Folha, em Belo Horizonte

Uma discussão sobre o referendo acerca da venda de armas de fogo e munição dentro de um bar em Juiz de Fora (255 km de Belo Horizonte) foi encerrada na madrugada desta sexta-feira com o defensor do "não" disparando três tiros contra o defensor do "sim".

O atirador foi preso em flagrante, e a vítima, internada no pronto-socorro da cidade.

Segundo o delegado Rodrigo Salomão, que fez a autuação, Fagner Silva Torres, 23, desempregado, estava bebendo no bar em um bairro da cidade quando começou a discutir sobre o referendo deste domingo com William da Silva, 26, também desempregado.

Eram cerca de 2h quando os ânimos entre os debatedores, que não se conheciam, se exaltaram. Torres sacou a sua arma e disparou três tiros contra Silva.

O defensor do "sim" foi levado para o pronto-socorro municipal de Juiz de Fora, onde foi operado e continuava internado no início da noite no centro cirúrgico. Segundo o hospital, Silva não corre risco de morte.

Torres fugiu usando um carro. A Polícia Militar foi chamada e iniciou as buscas, localizando-o já na saída da cidade, na rodovia BR-040, que liga Belo Horizonte ao Rio de Janeiro. A arma utilizada no crime foi encontrada escondida no filtro de ar do veículo, segundo a PM.

A Polícia Civil informou que o revólver usado por Torres tinha o número do registro raspado. Na delegacia, segundo o delegado, o suspeito confessou o crime e o motivo da desavença: o referendo. O atirador foi indiciado por "tentativa de homicídio qualificado por motivo fútil", disse Salomão.

Precisa dizer mais?

sexta-feira, 21 de outubro de 2005

Coisa rara

O dono da voz atualizou o site. Como sempre, depois de um loooongo tempo de silêncio.

terça-feira, 11 de outubro de 2005

Da validação da fila como modelo para o estudo sociológico

Estava o dono desta voz que lhes fala na famigerada fila do Consulado dos EUA em São Paulo para conseguir o visto adequado para participar de um congresso. Filas são locais (ou eventos?) privilegiados para a observação sociológica, como se verá a seguir. Ali na fila do consulado, havia uma excelente amostra da malfadada elite, aquela que o presidente jura ser culpada pela greve de fome do bispo da Barra, dom Luiz Flávio Cappio. Elite da qual fazem parte você que tem acesso à internet, o bispo, o presidente, o dono da voz e, por extensão, a própria voz.

O espécime mais interessante era, sem dúvida, um caipira-country vindo direto da Festa do Peão. Com chapelão, botina e uma imensa fivela prateada, o cowboy destoava no meio daquele mar de civilidade urbanizada que era a fila. O vendedor de guarda-chuvas proporcionou alguma diversão à elite entediada gritando a cada cinco minutos para o cowboy "Tião", que deve ser personagem dessa novela que se passa em Barretos, uma cidade do estado da Flórida. "Compra um guarda-chuva, Tião!"

Sabe-se que a característica principal da elite é achar que tem mais direito do que o resto do mundo. Essa "qualidade" era manifesta nas reclamações contra a demora e o "absurdo" de serem obrigados a passar por aquela humilhação para entrar nos EUA. Duas mulheres que tinham sido, por algum motivo, impedidas de entrar reclamavam indignada seus direitos de não voltar à fila mais tarde.

Outras duas representantes da espécie estavam bem na frente do dono da voz. Quando o segurança do consulado veio remanejar a fila para fazer o milagre da multiplicação do espaço, elas delicadamente se apresentaram como procuradoras do Estado e, imbuídas desse cargo divino, respeitosamente requeriam um atendimento privilegiado. Ou queriam furar a fila, diria o vendedor de guarda-chuvas, que continuava oferecendo seus produtos ao Tião. O segurança era bem treinado: atendimento preferencial só para idosos, gestantes e defiicentes físicos.

Se o melhor do Brasil são os brasileiros, ficam eleitos o vendedor de guarda-chuvas e o segurança do consulado, que explicou as regras básicas da ordem do atendimento às procuradoras, os melhores dentre as melhores coisas do Brasil.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

Um pronunciamento oficial

Foi isso o que o dono da voz andou pensando nestes últimos dias:


"Mais uma parte do alicerce da minha cidade ruiu na última segunda-feira. É a terceira vez que isso acontece este ano. Menos repentino, o último golpe desferido era aguardado como se espera por uma notícia ruim que é inevitável chegar. Porque já se sabe que ela está à porta, mas não se sabe quando ela entrará pela casa e levar toda alegria que encontrar.

Mais uma parte da minha casa desmoronou na última segunda-feira. Depois de quase uma década se agarrando aos fios da vida que ainda lhe restavam, meu avô não conseguiu vencer. E ele já havia vencido tanto!... Há jogos em que uma derrota apenas basta para o fim. Nunca se vence, apenas temos a chance de continuar no jogo. Fiquei com uma sensação estranha, de alívio porque, apesar de tanta vontade de viver, era uma vida já sofrida demais, e de tristeza porque o homem que parecia sobreviver a qualquer doença finalmente sucumbira.

A verdade da morte se impôs: não somos eternos nessa terra. Porém, foi emocionante ver a vontade com que meu avô lutou contra essa verdade. Como um sonhador. Como quem acredita na utopia da vida. E eu espero manter viva essa luta contra o que não for vida, ainda que a derrota seja certa.

Descansa em paz, vô. Foi um bom combate."



Placar do ano: 3 x 2 para a tragédia.

sábado, 1 de outubro de 2005

Da filosofia

"O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.

Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim"
(Filosofia, de Noel Rosa)
Não, o mundo não condena o dono desta voz. Talvez a voz, mas não o dono, acho. O passado até que pode condenar, mas boa parte dos pecados prescreveram faz tempo. Os crimes foram de réu primário, e há atenuantes.

Ainda que não haja condenação, é bem-vinda a filosofia, no entanto, seja ela a de vida, de bar, de fé ou mesmo a dos filósofos (que são todas filosofias, mas filosofias diferentes, como se bem sabe). Porque é com essa "filosofia" que o dono da voz se reconstrói, explica o mundo e a si mesmo, criando um habitat no qual a vida é possível. Iacob semper reformandus est.

Não precisa falar da gente, não somos adeptos do "fale mal, mas fale de mim". As memórias também vivem quando estão quietas e intocadas, assim como o sol continua brilhando mesmo que ninguém se lembre dele. Na memória, aquilo que é real fica mais valioso porque passou pela ourivesaria do hipocampo.

"Deus me ensinou praticar o bem,
Deus me deu essa bondade" (Cuidado com a outra, de Chico Buarque)

Ao dono da voz Deus fez o mesmo, caro Chico. Mas ele não abre porta, porque isso é trabalho para quem quiser entrar. Aliás, elas sempre ficaram destrancadas (mas não espalha não!).

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Guardanapos de papel

Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados
Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas
Não desejam glórias nem medalhas
Medalhas, medalhas, se contetam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos
Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados, nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retorcendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados quardanapos
Feito moscas inconclusas
Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e o mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro


(Léo Masliah, versão de Carlos Sandroni. Para ler a versão original em espanhol, clique aqui. A doce voz de Milton Nascimento canta ambas as versões no disco Nascimento, de 1997.)

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

A refundação de um partido

Há muitos anos, o dono da voz participava de uma séria brincadeira chamada micronacionalismo. Em poucas palavras, as micronações eram países simulados, com governo, relações diplomáticas, história, sociedade e cultura independentes. Era uma brincadeira, mas uma brincadeira potencialmente bastante séria porque permitia um contato mais próximo com o jogo político e também servia como um modelo bastante interessante para criar e testar formas de governo, de organização política e de mobilização social.

Pois bem, quando era cidadão da República de Orange, o "personagem" do dono da voz que era cidadão daquele país era Júlio Caimã, atualmente no auto-exílio e sem pretenções de sair da sua toca. Júlio Caimã, descontente com o teatro do faz-de-conta que se estabelecera no país de faz-de-conta que era Orange, criou o Partido do Contra (PdC). A fase que Orange atravessava tinha paralelos com a confusão na política brasileira desses dias: os partidos não representam ninguém a não ser a si mesmos; ideologias e propostas não significam nada; há uma falta gritante de bom senso e, por fim, a impressão de quem está de fora é que os parlamentares só trabalham mesmo é para serem eleitos para o próximo mandato.

O PdC era uma tentativa de se criar um partido para esses tempos pós-modernos, onde tudo é relativo e portanto não dá para ter certeza de absolutamente nada. A proposta era simples: o PdC vota sempre contra quando o projeto é estúpido, não tem relevância prática ou não tem a menor chance de se transformar em realidade. O PdC só vota a favor para projetos que convençam da sua viabilidade e do seu potencial para mudar o jeito como as coisas funcionam. Como projeto nenhum nunca tinha conseguido convencer ninguém de nada, então o PdC sempre acabava votando contra. Servia pelo menos para mostrar que o faz-de-conta não convencia todo mundo.

domingo, 11 de setembro de 2005

O vazio da espera

A voz está calada. Não que lhe falte o que dizer, mas é que nada agora importa senão como a espera desses dias se resolverá. Há uma tensão contínua entre a vida e a morte, uma queda de braço que já dura tempo demais. É impossível prever o resultado: às vezes mais para a morte, às vezes mais para a vida. Até as últimas notícias, ia mais para a morte do meu avô.

Essa espera é vazia, silenciosa como o quarto da UTI onde meu avô aguarda, sedado, o desfecho. Ele, na verdade, não aguarda, luta, surpreende-nos sempre que a morte estende sobre ele a sua sombra. Quem aguarda somos nós, que não podemos nada além disso. E é só essa vontade de segurar a vida que ele tem que impede que esta seja a crônica de uma morte anunciada: por pior que as coisas estejam, quem está naquela cama ainda é meu avô, que, só nesses últimos dias, sobreviveu a uma pneumonia, uma tuberculose, à hemorragia no pulmão e uma cirurgia para retirar o lobo que sangrava.

Nós aguardamos aqui, vô. Que Deus lhe seja por companhia, pelo menos quando não podemos entrar no quarto.

sábado, 3 de setembro de 2005

A boa maré foi dar nas pedras

Ele ligou para casa com uma notícia boa: o seu trabalho tinha sido premiado no congresso. Sensação boa a de ser reconhecido depois de tantos sofrimentos e de tantas vezes ter pensado em jogar tudo para o alto... E eis que ele liga para dar a boa notícia, e fica sabendo: o avô está na UTI, tinha piorado e a coisa era feia...

Parecia que estava certo, a vida era uma coisa cíclica, vinha uma fase ruim, depois uma boa, outra ruim, mais uma boa... Variavam as intensidades, mas era inexorável a vinda da parte boa depois da má e vice-versa. No entanto, algum sinal foi trocado no meio do caminho, e as duas fases se embolaram numa só: afinal, agora é para ficar feliz ou triste?

segunda-feira, 22 de agosto de 2005

Só reafirmando que a vida agora é boa

Minhas senhoras, meus senhores, é preciso que vocês me perdoem pela repetição que cometerei aqui. Mas o caso é que não deixo de me supreender pelo gosto bom que a vida deixou hoje quando desceu pela garganta do dono da voz. E o melhor de tudo é que ela é boa sem motivo, porque nenhum problema arredou pé e as nuvens no horizonte não são daquelas muito brancas de algodão.

A vida é boa porque agora ele pode, quando lhe der na telha, ir ver outra vez a casa de Cora Coralina em Goiás Velho, ou resolver perambular em Diamantina ou ver as estátuas de Aleijadinho nas próximas férias, sem precisar pensar em quem irá com ele. A grande descoberta do dono da voz é: eu sei viver sozinho. Há tanta coisa para ser descoberta! Há tanta gente para se conheceer! Há os palhaços no circo! Alguém aí não gosta dos palhaços? Que não vá ao circo então! Já é tarde? Ora, qual o problema, ele não está com sono e pode ficar até o céu se acender outra vez! Ela não quer caminhar? Ele quer, e portanto vai andar até ficar perdido se estiver disposto!

Um grande viva aos palhaços, aos cachimbos, às caminhadas no fim da tarde e à noite!

quarta-feira, 17 de agosto de 2005

Retomadas

É até meio ridículo constatar que, tão pouco tempo depois, ele anda por aí como se nunca tivesse experimentado dias angustiantes como viveu há poucos meses atrás. Não faz muito ele mal sabia como fazer para enfrentar o dia que começava na manhã seguinte, tinha desaprendido a viver por si só. Agora é como se a vida toda nunca tivesse deixado o controle das suas próprias mãos: como se ainda fosse um moleque, anda cheio de projetos e perspectivas, muito mais para ser feito do que cabe na sua existência. Lembremo-nos de que o seu tempo neste mundo já não é mais inteiro, porque pelo menos um quarto da vida ele já viveu.

Como alma nem grande, mas longe de ser pequena, ele agora já sabe que tudo valeu. Se não do jeito que ele queria, pelo menos para aprender que tudo passa, a vida vem mesmo em ondas como o mar. De vez em quando o mar arrasa com a praia --- foi vida demais. Outras vezes, a maré baixa e a vida não chega para livrar a areia do calor do sol. Mas quem duvida que o mar está lá?

Portanto, meus caros, quando o dono desta voz que lhes fala ficar tão atarefado que não me deixar trazer notícias, não pensem que nunca mais a voz falará. Eu também venho em ondas, como o som.

quarta-feira, 3 de agosto de 2005

Nova Iorque (IV) – 22 de junho

A porta que se abre para a rua é também a tampa de uma caixinha de música que é a própria cidade. Toda vez que se chega à rua, provavelmente pelo incentivo do sol morno brilhando nesses dias longos e satisfeitos de vida do verão existem no ar sons que levam ouvidos farejadores para degustar alguma melodia nova, diferente de todas as que foram experimentadas ontem e antes e amanhã e depois.

Há uma performance exclusiva e própria de cada dia e lugar. Tinha uma dupla cantando músicas de um país que esse já não é mais. Também não é mais possível rever o show, ainda que se retorne ao mesmo parque, à mesma esquina, à mesma estação em que eles estiveram. A mesma singularidade, e só o fato de serem coisas únicas é que se repete, com o bluesman, a flautista, o mexicano que tocava Besame mucho, a negra tocadora de tambor e também o solitário cantor. Um pedacinho de música por vez, um bocado de canção, e isso é que vai mantendo os dias leves apesar do peso quente do calor e dos trastes que cada um carrega dentro de si.

quinta-feira, 21 de julho de 2005

Nova Iorque (III) – 20 de junho

Há um interminável jogo acontecendo nas ruas dessa cidade em que, certa vez, existiram duas torres de Babel, tamanha a confusão lingüística que se ouve em qualquer canto. Hoje eu encontrei um grupo de meninas portuguesas e uma família brasileira paulistana, que falavam uma língua que atende pelo mesmo nome, a língua de Camões e Machado de Assis, mas cada um lá da sua maneira. Ouvi também duas moças falando numa língua que me soou eslava, e uma delas se exaltava tanto que todo o trem tentava, inutilmente, descobrir a razão de tanta raiva. Dois homens que atravessaram a avenida comigo quando deixei o metrô falavam outra língua que não arrisco qual seja, mas aposto que é parente da que a mulher irritada gritava no vagão. Ouvi também uma francesa que procurava um livro, a duas estantes de distância da que eu estava quando em visita proveitosa a uma imensa livraria. E mais o espanhol e o inglês, as duas línguas alicerces da babel de Nova Iorque, sem contar o velhinho lendo um jornal em chinês ou japonês, aquela coalhada de ideogramas se esparramando por toda a página sem indicação nenhuma de por onde se começa e se termina de ler.

Sei também que, por essas ruas, se conversa em italiano, alemão, grego, polonês e russo, e na infinidade de dialetos africanos, eslavos e asiáticos e, ainda que às escondidas, árabe, todos os sons que estão associados à feições, roupas e cabelos característicos. Todos se valem de serem incompreensíveis à maioria dos que os cercam, sentem-se anônimos, são um segredo quase inviolável as suas palavras. Até mesmo os que usam o inglês às vezes falam como se os entendessem só um interlocutor escolhido, porque as palavras que soltam pela rua revestem-se de uma invisibilidade sagrada como a de Deus, só podendo enxergar os seus significados aqueles que receberam a graça de serem previamente eleitos, os que sabem professar aquela fé.

Na confusão estabelecida muito antes de erigirem as torres que caíram, a voz se diverte invadindo, até mesmo sem querer, esses rituais — ou pelo menos alguns deles, dos que as orelhas são capazes de captar e que são também um pouco dela, porque ela também sabe articulá-los. Nem percebem, mas quem está ali também sabe rezar, um pouco que seja, aquelas preces que eles fazem. E, de vez em quando, se o dono da voz se sente mais sozinho, a garganta ecoa os mesmo sons, abandonando o disfarce apenas para lembrar como se conversa com alguém.

terça-feira, 19 de julho de 2005

Nova Iorque (II) – 18 de junho

Nova Iorque é uma cidade sólida com chão muito mais abaixo do que pisam nossos pés. Sob nós, espalham-se túneis, estações de metrô, trilhos, galerias, e mais abaixo outros trens ainda, e coisas ainda mais subterrâneas.
Acima da terra, a solidez e a solidão dos prédios imponentes e impávidos, que se investem de eternidade como se estivessem aqui desde a fundação da ilha de Manhatan. Sobriamente enfeitados, vestidos de cinzento, às vezes de um vermelho-terra ou pardo, eles muram a cidade como se fossem os seus guardiões.

As ruas estão sempre cheias, movimentadas, brilhantes do verão que chega para reinar sobre os parques todos da cidade. As crianças brincam e correm desesperadamente, enchendo-se da luz que faltou durante os meses frios do ano, pulando de um lado para o outro como pardais agitados. Há toda uma celebração de boas-vindas a esse sol que me ofusca, enchendo a folha de papel de um branco que grita como as crianças: há gente tocando e cantando pelas ruas e nos parques, museus que escancaram suas portas, chamando as gentes para ver o verão nas telas dos quadros com a bênção fresca do ar condicionado, atores que usarão o sol para iluminar-lhes o palco em que serão representadas outras histórias de verão.

Ele se cala e observa todas essas cerimônias, anotando qualquer coisa no seu caderno. Quando se cansa, lê o livro que carrega sempre. E assim os dias vão seguindo na grande parada dos dias de verão, em que exibem a vital claridade que se orgulham tanto sem darem sinal de que, em algum momento, tudo vai se recolher novamente às casas aquecidas e acarpetadas, onde os meninos ficarão com os narizes grudados na janela jogando com os seus olhares ansiosos um pouco de cor nas ruas cinzentas.

quinta-feira, 14 de julho de 2005

Nova Iorque (I) – 9 de junho

É meu terceiro dia aqui. Feels like home! Mas é uma casa repleta de estranhezas: não se acostumou com as propagandas de escritórios de advocacia no metrô, oferecendo ações milionárias para quem quebrou uma unha no trabalho, nem com os “no”, as proibições que se espalham por toda a parte. Não é tanto o problema de existirem os “no”, mas eles pularem a todo instante na nossa frente, sem pudor nenhum em sua nudez não permitida.

São assim as coisas aqui: se não há um “no”, aquilo que não foi proibido existe. Ninguém parece ser capaz de se auto-restringir muito. É um tanto óbvio, para esta humilde voz, que não se cuspa no corredor do ônibus. Para eles, surpreendentemente, não é, e deve-se portanto proibir, porque, tomando as tabuletas das proibições como regra, não há o mínimo senso de limite embutido nessa gente. As vergonhas do dono da voz também são maiores que as deles: ele tem medo de sair de pijama pelo corredor até o banheiro. Fica receoso de usar uma camiseta velha para sair pela rua.

Aqui, ouço mais do que falo, mais ainda do que o meu normal. Confio pouco ainda no meu inglês para dizer qualquer coisa, porque na boca onde moro soa essa língua estranha mais crua do que de costume. Rude, quase um alemão e seus fonemas ríspidos. Tenho quase certeza de que há nas minhas costas uma dessas tabuletas de proibição com um “no speaking”…

A voz falando outra língua

Aos poucos, esta voz, contaminada pelos sons artificiais do inglês que era captado incessantemente pelas orelhas, foi se descobrindo também capaz de produzir, ainda que com sons imperfeitos, aquela fala estranha, diferente da que nasceu para pronunciar. Começando num sussurro, ela vociferava cada vez mais alto, mais segura da sua capacidade de se fazer entender e de recriar, sempre que preciso, a mágica da comunicação dos desejos e necessidades do dono da voz. Às vezes consciente, outras nem tanto, dos erros gramaticais e de pronúncia que vai cometendo, a voz segue mesmo assim, entrando nas lojas, caminhando nas ruas, perguntando as horas e pedindo licença, parecendo até que nunca falou nada que não fosse essa língua que se fala aqui.

Nova Iorque

Depois das férias, esta voz deixará o dono falar. Assim, quem terá férias a partir de agora será a voz. Com vocês, o dono da voz.

segunda-feira, 6 de junho de 2005

Última chamada

O alto-falante falou que agora eram as despedidas finais, os últimos momentos antes dele se confinar no tubo gigante com asas, que voa, a despeito das nossas desconfianças e medos. Do lado de lá da parede, ele está por sua conta, e segue para desbravar a si mesmo, descobrindo novos mundos, dobrando o Cabo da Tormenta em busca do da Boa-Esperança. Encontrará riquezas nas novas terras? Enfrentará porventura o motim da sua razão contra a alma, ou vice-versa? Quem dirige o seu navio?

O barco é pequeno, e grande é o mar. Ele não enxerga a coluna de fogo nem a grande nuvem que já guiou um povo pelo deserto. Não sabe usar o astrolábio, para onde vai não tem o Cruzeiro do Sul. Menos mal, sabe que o mundo é redondo, e, ainda que tenha que navegar por meses a fio, em algum momento há de esbarrar em terra firme. E ensinará os nativos a orar o Pai Nosso e os ajudará a lavrar a terra, mandará notícias do mundo de lá quando der.

segunda-feira, 30 de maio de 2005

Essa coisa que eu carrego

Tucupi, tacacá, tambaqui, taperebá, carapanãs, jaraqui, matrinchã e outras coisas que têm nome de oxítona, como resumiu bem um grande amigo, acompanharam-nos nesses dias. As oxítonas e qualquer outra coisa que foi até o Amazonas e de lá voltou, grudada no dono da voz, aninhada no peito, que não sei bem o que é.

Eu mesma sentia que a coisa corria na garganta comigo, escorregando junto com os sons da fala. De vez em quando era uma tristeza, mais para saudade daquilo que foi e não é mais; às vezes era só um desalento, uma sensação de perdimento no mundo, mas quase sempre era o desespero de não saber como continuar a história da vida.

sábado, 7 de maio de 2005

Missão entre os índios

Estaremos ausentes, a voz e o dono, por um breve período, durante a "missão entre os índios". Quando pudermos, mandamos notícias. Quem sabe alguma coisa em nhengatu ou tupi guarani. De qualquer form, aguardem, que esperamos dizer algo do coração da floresta.

quarta-feira, 4 de maio de 2005

Travessia

Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar

Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho prá falar
Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar

Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver

Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar

(Letra de Fernando Brant, música de Milton Nascimento)

sábado, 30 de abril de 2005

"A Rita levou meu sorriso..." (comentada)

A Rita
Chico Buarque - 1965

A Rita levou meu sorriso
No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
E o que me é de direito
Arrancou-me do peito
E tem mais
Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Que papel!
Uma imagem de São Francisco
E um bom disco de Noel

A Rita matou nosso amor
De vingança
Nem herança deixou
Não levou um tostão
Porque não tinha não
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meu pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo
Um violão
----

O violão só não ficou mudo porque ele não tocava. Ela tocava violão, ele tocava piano. O piano da sua casa desafinara, era antes só um porta-porta-retrato porque ele tocava muito pouco enquanto estiveram juntos. Depois, ele precisava preencher o tempo que dedicava àquela que levou os seus vinte anos (ou pelo menos boa parte deles), e voltou a fazer o que não fazia há muito: tocar piano, escrever bobagens em caderninhos, andar sem rumo pela rua.

O amor não morreu de vingança, caiu de maduro. Maduro, mas não podre, acho. Os discos, que não eram de Noel (os de Noel já tinham sido devolvidos, pouco antes, num ato de encerramento antecipado), ela devolveu. Ele só não achou ainda outros planos, porque não sabe mais conviver com ele mesmo. Não sabe de é a ausência dela ou a sua presença mais viva que o incomoda e lhe dá um sentimento de estar peridido na feira de domingo, sem saber nem para onde correr para ficar em segurança. Pisam-lhe os pés, esbarram nele com carrinhos, a mão involuntariamente se espeta num abacaxi.

É ao mesmo tempo uma liberdade excessiva e uma amarra, que o segura onde está. Não há mais empecilhos, ele pode ir para onde quiser sem se preocupar com muita coisa. Pode ser escritor, gari, pode até ser músico, que importa o futuro? Mas e coragem para passos incertos, agora que não há mais certeza de nada? Ele acaba ficando no lugar, quieto, como a sua mãe tinha lhe ordenado quando moleque: "se você se perder de mim, fica onde está, que eu volto para te buscar". Ninguém virá, ele sabe. Mas é só o que ele pode fazer, pelo menos até a feira acabar, a bagunça ir embora e as barracas deixarem a sujeira para trás.

quarta-feira, 27 de abril de 2005

Um passo para frente, dois passos para trás

Cinco anos atrás, o dono da voz era mais um garoto em crise existencial durante o seu segundo ano de faculdade. Tinha 20 anos, e não tinha um grande amor. Arranjava os seus trocados fazendo uns bicos traduzindo textos do inglês para o português. Gostava de música e achava que talvez pudesse ser escritor.
Hoje, depois de muitos malabarismos, o garoto está começando a perceber que ele não é mais um garoto. A terceira década aproxima-se, impiedosa, sussurando em seus ouvidos que não ele não tem mais todo o tempo do mundo. Saiu da faculdade, fez mestrado. E continua no mesmo pé que estava há cinco anos atrás, fazendo traduções, escrevendo, solteiro porque o grande amor já se foi.

Erratum: é a quarta década, e não a terceira. Pior ainda... (28 abril 2005)

quinta-feira, 21 de abril de 2005

Reviralvoltas

Ao que tudo indica, o retiro será adiado. O dono da voz fará uma missão entre os índios antes de partir para o seu retiro. Mais ou menos o que aconteceu com Paulo durante a sua segunda viagem missionária:
"E, percorrendo a região frígio-gálata, tendo sido impedidos pelo Espírito Santo de pregar a palavra na Ásia, defrontando Mísia, tentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não o permitiu."
(Atos 16:6,7)
No caso, não é o Espírito Santo, e nem o dono da voz vai para pregar a palavra, no sentido religioso da coisa. É mais mundano mesmo. De qualquer forma, desçamos a Troâde.

domingo, 17 de abril de 2005

Retiro espiritual

Lutero foi para Wittenberg buscando solucionar a angústia da condenação da sua alma pelos seus pecados. Muitos se enclausuram em monsteiros e conventos, abandonando este mundo que abriga as tentações e incita o pecado, tentando encontrar Deus através de uma santidade estéril, asséptica. Como se Deus estivesse restrito aos lugares que convencionamos ser apropriados, limpos, como se Ele morasse em centros cirúrgicos.

O dono da voz fará o caminho inverso. Ao invés de renunciar ao mundo, declara sua intenção de abraçá-lo e de vagar pelas suas vísceras. Não se retirará do mundo para encontrar Deus, mas vai para o seu umbigo, onde são geradas as idéias, os conceitos, os ódios, os medos. Um mês no centro da terra. E Deus há de estar lá, e os dois, Deus e o dono da voz, passearão na hora do rush pelas avenidas.

terça-feira, 12 de abril de 2005

Presenças insistentes

No filme Lutero (veja também aqui se quiser saber mais), o monge reformador, aparece em algumas cenas, em desesperadas discussões com o demônio. São como surtos esquizofrênicos: assolado pelo peso da culpa criada seus pecados, culpa que ele não consegue expiar até que descobre o mistério da graça de Deus, Lutero grita, se exaspera, manda o diabo embora, suplicando que lhe deixe em paz, ainda que ninguém esteja na sala. Lutero age impecavelmente conforme sugerido pelo apóstolo Tiago: "... mas resisti ao diabo, e ele fugirá de voz." (Tiago 4:7).

Aqui assola também o dono da voz presenças que se recusam a ir embora, como as culpas de Lutero. Presenças incômodas, que se fazem sentir a todo momento, e não se desvanecem com gritos. Elas estão aqui, embora o dono da voz esteja sozinho agora. Cerca-o por todos os lados, pesa sobre os seus ombros, mas não se pode vê-la.

Não há, por enquanto, a graça para redimi-lo deste triste estado. É preciso fazer como Lutero, abandonar a sua vida e procurar as respostas em outro lugar. Lutero foi para Wittenberg, beber cerveja e estudar teologia, ou vice-versa. Para onde irá o dono da voz?

segunda-feira, 11 de abril de 2005

A sede e as águas de Mara

Saindo pelo deserto, o dono da voz caminhou. Não é a primeira vez que ele caminha pela terra rachada do sertão. Cresceu sobrevivendo bebendo água de mandacaru, um cangaceiro sem bando, um Lampião sem Maria Bonita. Depois de muita peregrinação, o dono da voz alcançou a região onde a terra era macia. Ali, todos feriavam, não porque a terra não desse trabalho para ser cultivada - ainda era preciso arar a terra, regar as mudas, podar as árvores de frutos proibidos ou não -, mas porque era uma terra onde havia alegria, havia vinho e festa.
Mas depois, o clima endoideceu, os rios deixaram de refrescar o solo. A colheita foi perdida, o vinho azedou. Veio a fome, a sede. Água, só o que sobrou no fundo dos poços, uma água salobra, amarga. Águas de Mara, impossíveis de serem bebidas.
Algum dia desses, Deus há de apontar uma árvore, que o dono da voz lançará nessas águas, e elas serão boas de beber outra vez.

(paráfrase de Êxodo 15:22-27)

segunda-feira, 4 de abril de 2005

Resposta ao primeiro comentário: da ineficácia da música como tenda

Uma alma piedosa sugeriu que o dono da voz usasse da música como tenda. Pois bem, é dever da voz que se dirige àqueles que aqui aportam que o dono da voz tem usado, sim, a música. Porém, ela é uma tenda frágil. Uma tenda deve ser capaz de propiciar um mínimo de sentimento de espaço onde dominamos. Na tenda, pode-se controlar o que acontece ali dentro, quem entra e quem sai, impede que surpresas caiam sobre as nossas cabeças. O problema da música é que ela não dá certezas, mas leva-nos para lugares às vezes desconhecidos, e até inóspitos. Boas canções são coisas capazes de evocar lembranças há muito enterradas sob sinapses muito mais ativas que, por alguma misteriosa razão, cedem seu lugar a esses mortos-vivos, memórias evocadoras de assombrações. Nunca sabemos o que a música produzirá em nós, nem a poesia, nem qualquer outra arte.

Ainda que a música não seja uma boa tenda, é um bom farol, iluminador de novos caminhos. O dono irá, agora, na direção daquilo que o seu coração cantar.

quarta-feira, 30 de março de 2005

Reconstrução (I)

Reconhecida a destruição, deve-se começar a reconstruir. Nem que seja uma tenda provisória, para o tempo do deserto, que possa ser carregada para qualquer lugar.

Há vantagens nisso tudo. Houve um tempo em que se espalhava por aí que a única solução possível para alguns lugares era jogar uma bomba e começar de novo. Pois bem, existe agora a oportunidade de testar a viabilidade da idéia, já que a bomba já arrasou com tudo. Como iremos reconstruir? Ele agora pode aproveitar a oportunidade para se reinventar, e acabar pelo menos um pouco menos ruim do que era.

Mas isso fica para depois, precisamos de ações emergenciais. A voz anuncia que o dono está aberto a doações voluntárias para que seja erguida, ao menos, uma tenda que proteja contra as muitas e muitas tempestades de areia que virão. Porque desertos, de qualquer maneira, não são bons lugares para se construir: só o tolo constrói sua casa na areia.

segunda-feira, 28 de março de 2005

Passagem

Ele atravessa o deserto depois da sua libertação. Ainda sente falta das cebolas, das mesas fartas do Egito: antes escravo de um grande amor do que perdido na areia, sem saber para onde ir.

Chegou o tempo da libertação. Antes mesmo que ele percebesse, corria com pães assados sem nem mesmo a massa fermentar e ruminava coisas amargas que ficaram daquele tempo.
Precisava pressa, muito tempo perdido e que deveria ser recuperado.

Ele atravessou o mar, e agora o deserto. Poderia fazer as águas se abrirem antes, mas agora, que será de nós? Uma chama misteriosa vai à nossa frente, leva-nos para um lugar que desconhecemos. Haverá água? Teremos comida? Um repouso em lugar fresco mais à frente, talvez? E amanhã, que será de nós?

E amanhã? Nossa esperança morreu há dias...

A não ser que a morte seja derrotada, pela primeira vez, a não ser que a morte não seja absoluta, definitiva e, naturalmente, fatal. Para que a jornada continue, a vida deve se sobrepor à morte. Se não, que será de nós?

Hoje, o dono precisa crer, mais do que nunca, na ressurreição. Precisa saber que a vida continua depois da morte, que a semente brota e volta a nascer. Precisa da Páscoa para conseguir depois aceitar o Natal, tem que acreditar que a estada no deserto acaba, ainda que dure por muito tempo, mas acaba e desemboca num lugar onde há leite e mel, onde as uvas são imensas e podemos nos embriagar de vinho e sol.

quinta-feira, 24 de março de 2005

Ponto de liquefação

A esperança não sobreviveu, não chegou a ver nem a boca da madrugada, quanto mais a luz do sol. Fez água, virou pó. Se as coisas se transformam, tomara que seja como na música, que não seja nem bom nem mal, apenas diferente.

O dono sai para outras terras, para outro mar. A voz aprenderá novas línguas, ecoará por sobre os montes e alcançará vales desconhecidos, cheios de vida, lugares de onde a terra sangra leite e mel. Sozinho, mas o barco acolhe naúfragos perdidos e ilhéus em busca de horizontes outros. Que sejam calmos os mares por onde ele for, que lhe seja favorável o vento e mansa a brisa. Que as marolas embalem novos sonhos, que as marés tragam a vida ao seu redor. Que os portos se lhe abram, cheios de coisas novas e desconhecidas, que lhe seja boa a acolhida qualquer que seja a terra em que ele desembarcar.

quarta-feira, 23 de março de 2005

Ponto de reversão

Esta voz cantará para todos os santos e orixás, suplicará aos poderosos e as humildes, porque amanhã há esperança. Amanhã, tudo pode ser igual antes. Não quero que amanhã seja um novo dia, quero que seja iguais aos dias que já vivemos, em especial os dias dos últimos quatro anos. Que assim seja.

segunda-feira, 21 de março de 2005

Funerais

No meio de janeiro, o avô do dono da voz encenou seu ato final neste mundo, tocou as últimas notas na sua gaita como se elas fossem os clarins anunciando o porvir. Foi um choque descomunal, abrupto, como se fosse o ladrão da noite quando todos se sentem seguros e confortáveis. O mundo tornou-se um lugar instável demais desde então.

Foi assim que se perdeu o elo com o passado, a história de onde viemos, o lastro da paixão pela música da alma de artista. No mês seguinte, o segundo funeral, o rompimento com o futuro que pacientemente esboçavam há quatro anos. Novamente, a violência sem aviso, o apocalipse sem as profecias anunciando que era chegado o fim dos tempos, e ela partiu para um sonho diferente onde não existia lugar para o dono nem para a voz.

Alijados do futuro e sem o passado para nos sustentar, resta agora esse hoje, o agora irreconhecível porque foi desfigurado, arrancaram o que tínhamos para enfrentá-lo. Esse presente de grego nós rejeitamos, não nos encontramos nele nem sabemos como atravessá-lo até que cheguem dias melhores.

domingo, 20 de março de 2005

Os sonhos são desejos reprimidos

O dono da voz sonhou com ela, mais de um vez, na mesma noite. Na primeira vez, ela surgia ao seu lado, o que, considerando a ausência instalada, já era uma grande e celebrada novidade. Eufórico, ele quis mais, e sonhou que ela voltava para ele. Imediatamente, os dias se fizeram mais calmos, ela de volta aninhada nos seus braços e esparramada no sofá. O sonho pode durar uma noite inteira, mas o estado lastimável do dono refez-se pela manhã: estava sozinho.

sábado, 19 de março de 2005

Prognóstico

"Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos." Apóstolo Paulo, na 2º carta aos coríntios, capítulo 13, versículo 5.


Vinte um dias depois. Os primeiros dias foram a fase do choque, da assimilação do fato. Depois, a negação, de fugir da raia, procurando encher a cabeça com outras coisas. Até que ela se impôs, soberana, arrebentando todas as colunas que davam uma falsa estabilidade à vida do dono. A tristeza e a solidão aumentaram, um certo desespero abafado, uma agústia de descobrir que não saber mais quem somos na nova ordem sentimental. A continuar nessa toada, o poço vai ficando mais e mais fundo, os dias mais escuros e as noites mais longas, intermináveis, principalmente depois que, com a cabeça no travesseiro, o dono da voz fica olhando para o teto, como se alguma luz fosse surgir para resgatá-lo. Mas a luz o deixou. E é difícil permanecer na fé, não porque nela é preciso acreditar naquilo que não se vê, mas sim porque é preciso seguir em frente sem alguém que lhe dava esperança. Sem fé, sem amor, sem esperança.

Recomendação médica: considerar a necessidade de acompanhamento psicológico.

quinta-feira, 17 de março de 2005

Vazio

Diga quem souber, que nem o dono nem a voz podem responder: o que é que preenchia a vida do dono antes disso? O que corria nas suas veias, quais os ruídos e perfumes que recuperavam as suas boas lembranças e alicerçavam os seus sonhos?

Alguém invadiu a casa pela varanda vazia e, depois de haver ceado, comido do pão e tomado do vinho, abandonou a festa. Antes, porém, trocou as fechaduras de todas as portas, de modo que ninguém pode mais acessar cômodo nenhum com as chaves antigas.

terça-feira, 15 de março de 2005

Reconstrução da cidade

A catástrofe deixou os escombros e os túmulos, onde descansam os sonhos do dono. Que descansem em paz e deixem-nos em paz. Eram sonhos de um futuro onde cabiam uma família, filhos, uma casa espaçosa e arejada numa cidade do interior. Na sala, haveria um sofá vermelho. As paredes teriam quadros, os quadros que ela pintou e de vez em quando pintava ainda. Haveria uma biblioteca, onde, antes das crianças nascerem e depois que elas se fossem atrás das suas próprias vidas, os dois passariam as tardes, principalmente aquelas regadas com chuvas de verão.

Na cozinha, fariam pão e dançariam passos desconjuntados, num eterno ensaio do que fariam um dia desses rodopiando no salão. Não teriam cachorro nem gato; talvez um peixe que gostasse quando tocassem o piano da sala.

Nada disso, porém, cabe mais nas novas casas da cidade reconstruída. As ruas serão outras, ninguém terá sofás vermelhos. Enquanto as casas não ficam prontas, tomam chuva, passam frio e acordam molhados de orvalho com o sol nascendo. Quando tudo estiver em pé outra vez, haverá uma festa, planejam os detalhes da comemoração mas nem sabem se viverão até lá. Vivem de esperança de que a vida será boa outra vez, mas não igual ao que era antes.

sexta-feira, 11 de março de 2005

Resoluções para uma vida nova

Saí da traquéia para anunciar que o dono da voz decidiu que é preciso continuar vivendo. Portanto, não aguardaremos posições definitivas, acomodações e coisas do tipo. Acertadas as devoluções da parte que cabe a cada um do latifúndio construído nos últimos quatro anos, a terra volta a ser cultivada. Só não sei ainda com o quê, mas isso pode aguardar a estação apropriada. Provavelmente a colheita não será tão boa como a dos últimos anos, mas é preciso viver. Encaremos isso como rotação de culturas, para aumentar a produtividade. No meio tempo, criaremos os bodes que apareceram na sala.

domingo, 6 de março de 2005

Coisas boas da vida

Nada como trabalhar num domingo de sol, uma semana depois de ter a sua vida virada pelo avesso. Sem nenhum plano objetivo para o futuro que não sentar e ver o que acontece, ele se divide agora em coisas que devem ser feitas e coisas que podem ser feitas para passar o tempo. Exemplo principal: estas mal traçadas linhas, que ele desistiu de escrever e repassou a tarefa para a voz. Diz que, além de não ter planos, anda sem idéias novas porque está aprisionado nos últimos quatro anos.

Eu não o culpo, porque, sendo parte dele, também me ressinto dos caros e fundamentais alicerces que o sustentavam. Nada muito digno de nota, mas essenciais para conseguirmos suportar a nós mesmos. Sozinhos, fica muito difícil acreditarmos na importância das nossas próprias vidas. Nós dois, pelo menos, só acreditamos em nós quando nossa existência é capaz de produzir de afetar, de preferência positivamente, alguém por aí.

Mas o galho é que esta voz também não vai conseguir remendar nada, até porque toda voz precisa de um ouvido para eventualmente ser eficaz. Esbarramos, então, no mesmo problema que nos trouxe até aqui, que é a falta de quem ouvia a voz e compreendia o dono da voz. Concordemos que não há solução possível para esse impedimento, a não ser que a peça que precisamos retorne, por sua livre e espontânea vontade. Impedidos de fazer aquilo que nos define, de viver através da alegria dos outros, como ficamos? Devemos sair em busca de novas platéias, como palhaços do circo? Ou abandonamos a trupe para nos transformarmos em quem não somos?

sexta-feira, 4 de março de 2005

Advertência inicial importante por parte da voz do dono

A voz sabe-se livre para dizer o que quiser, com ou sem a anuência do dono. Afinal, estamos num país livre, num território virtual onde, antes de tudo, há liberdade para se dizer o que vier na ponta da língua. A voz rejeita a razão como sua censora permanente, e exige o seu direito de denunciar os maus-tratos e a opressão que a subjuguem, ou a qualquer outro, inclusive o dono da voz.
A voz afirma ser necessária a celebração do verbo, seja ele feito carne ou em espírito que se propaga pelo ar, para nos redimir da opressão racional dos donos das vozes, aprisionadas pela lógica em traquéias úmidas e escuras.
Vida longa à voz e às palavras que ela faz ecoar!

Advertência inicial importante por parte do dono da voz

A voz costuma ser comportada e não fazer comentários a respeito do dono, que, por precaução, evita deixá-la dizer livremente o que quiser. O dono considera que a voz lhe pertence e, portanto, ela deve manifestar-se somente quando o que for dito traga algum benefício ao dono.

Ainda que lhe seja proveitoso, o dono entende que a voz deve atuar com moderação ao falar pelo dono. Caso a voz emita opinião regularmente e em pequenos intervalos de tempo, há indícios de que o dono esteja com problemas. Neste caso, por favor providencie atendimento médico ou psicológico ao dono.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

Ata de abertura

Ao apagar das luzes do mês de fevereiro do infeliz ano de 2005, inaugura-se mais um delírio cuja ambição é o de ser a voz do seu dono. Reconhece-se, porém, que tudo o que o dono da voz leva à luz têm alto índice de mortalidade. Não há portanto meios pelos quais o dono ou a voz possam se responsabilizar pelo futuro deste empreendimento. É livre, no entanto, a manifestação de apoio e o incentivo para que a vida desta iniciativa exceda os prognósticos sombrios que ora se lhe oferecem. Dá-se preferência por gestos de estímulo expressos por contribuições financeiras; na ausência do vil metal, são aceitas de muito bom grado críticas do nobre público que se utilizará dos nossos (des)serviços.