terça-feira, 27 de setembro de 2005

Guardanapos de papel

Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados
Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas
Não desejam glórias nem medalhas
Medalhas, medalhas, se contetam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos
Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados, nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retorcendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados quardanapos
Feito moscas inconclusas
Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e o mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro


(Léo Masliah, versão de Carlos Sandroni. Para ler a versão original em espanhol, clique aqui. A doce voz de Milton Nascimento canta ambas as versões no disco Nascimento, de 1997.)

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

A refundação de um partido

Há muitos anos, o dono da voz participava de uma séria brincadeira chamada micronacionalismo. Em poucas palavras, as micronações eram países simulados, com governo, relações diplomáticas, história, sociedade e cultura independentes. Era uma brincadeira, mas uma brincadeira potencialmente bastante séria porque permitia um contato mais próximo com o jogo político e também servia como um modelo bastante interessante para criar e testar formas de governo, de organização política e de mobilização social.

Pois bem, quando era cidadão da República de Orange, o "personagem" do dono da voz que era cidadão daquele país era Júlio Caimã, atualmente no auto-exílio e sem pretenções de sair da sua toca. Júlio Caimã, descontente com o teatro do faz-de-conta que se estabelecera no país de faz-de-conta que era Orange, criou o Partido do Contra (PdC). A fase que Orange atravessava tinha paralelos com a confusão na política brasileira desses dias: os partidos não representam ninguém a não ser a si mesmos; ideologias e propostas não significam nada; há uma falta gritante de bom senso e, por fim, a impressão de quem está de fora é que os parlamentares só trabalham mesmo é para serem eleitos para o próximo mandato.

O PdC era uma tentativa de se criar um partido para esses tempos pós-modernos, onde tudo é relativo e portanto não dá para ter certeza de absolutamente nada. A proposta era simples: o PdC vota sempre contra quando o projeto é estúpido, não tem relevância prática ou não tem a menor chance de se transformar em realidade. O PdC só vota a favor para projetos que convençam da sua viabilidade e do seu potencial para mudar o jeito como as coisas funcionam. Como projeto nenhum nunca tinha conseguido convencer ninguém de nada, então o PdC sempre acabava votando contra. Servia pelo menos para mostrar que o faz-de-conta não convencia todo mundo.

domingo, 11 de setembro de 2005

O vazio da espera

A voz está calada. Não que lhe falte o que dizer, mas é que nada agora importa senão como a espera desses dias se resolverá. Há uma tensão contínua entre a vida e a morte, uma queda de braço que já dura tempo demais. É impossível prever o resultado: às vezes mais para a morte, às vezes mais para a vida. Até as últimas notícias, ia mais para a morte do meu avô.

Essa espera é vazia, silenciosa como o quarto da UTI onde meu avô aguarda, sedado, o desfecho. Ele, na verdade, não aguarda, luta, surpreende-nos sempre que a morte estende sobre ele a sua sombra. Quem aguarda somos nós, que não podemos nada além disso. E é só essa vontade de segurar a vida que ele tem que impede que esta seja a crônica de uma morte anunciada: por pior que as coisas estejam, quem está naquela cama ainda é meu avô, que, só nesses últimos dias, sobreviveu a uma pneumonia, uma tuberculose, à hemorragia no pulmão e uma cirurgia para retirar o lobo que sangrava.

Nós aguardamos aqui, vô. Que Deus lhe seja por companhia, pelo menos quando não podemos entrar no quarto.

sábado, 3 de setembro de 2005

A boa maré foi dar nas pedras

Ele ligou para casa com uma notícia boa: o seu trabalho tinha sido premiado no congresso. Sensação boa a de ser reconhecido depois de tantos sofrimentos e de tantas vezes ter pensado em jogar tudo para o alto... E eis que ele liga para dar a boa notícia, e fica sabendo: o avô está na UTI, tinha piorado e a coisa era feia...

Parecia que estava certo, a vida era uma coisa cíclica, vinha uma fase ruim, depois uma boa, outra ruim, mais uma boa... Variavam as intensidades, mas era inexorável a vinda da parte boa depois da má e vice-versa. No entanto, algum sinal foi trocado no meio do caminho, e as duas fases se embolaram numa só: afinal, agora é para ficar feliz ou triste?