quarta-feira, 30 de março de 2005

Reconstrução (I)

Reconhecida a destruição, deve-se começar a reconstruir. Nem que seja uma tenda provisória, para o tempo do deserto, que possa ser carregada para qualquer lugar.

Há vantagens nisso tudo. Houve um tempo em que se espalhava por aí que a única solução possível para alguns lugares era jogar uma bomba e começar de novo. Pois bem, existe agora a oportunidade de testar a viabilidade da idéia, já que a bomba já arrasou com tudo. Como iremos reconstruir? Ele agora pode aproveitar a oportunidade para se reinventar, e acabar pelo menos um pouco menos ruim do que era.

Mas isso fica para depois, precisamos de ações emergenciais. A voz anuncia que o dono está aberto a doações voluntárias para que seja erguida, ao menos, uma tenda que proteja contra as muitas e muitas tempestades de areia que virão. Porque desertos, de qualquer maneira, não são bons lugares para se construir: só o tolo constrói sua casa na areia.

segunda-feira, 28 de março de 2005

Passagem

Ele atravessa o deserto depois da sua libertação. Ainda sente falta das cebolas, das mesas fartas do Egito: antes escravo de um grande amor do que perdido na areia, sem saber para onde ir.

Chegou o tempo da libertação. Antes mesmo que ele percebesse, corria com pães assados sem nem mesmo a massa fermentar e ruminava coisas amargas que ficaram daquele tempo.
Precisava pressa, muito tempo perdido e que deveria ser recuperado.

Ele atravessou o mar, e agora o deserto. Poderia fazer as águas se abrirem antes, mas agora, que será de nós? Uma chama misteriosa vai à nossa frente, leva-nos para um lugar que desconhecemos. Haverá água? Teremos comida? Um repouso em lugar fresco mais à frente, talvez? E amanhã, que será de nós?

E amanhã? Nossa esperança morreu há dias...

A não ser que a morte seja derrotada, pela primeira vez, a não ser que a morte não seja absoluta, definitiva e, naturalmente, fatal. Para que a jornada continue, a vida deve se sobrepor à morte. Se não, que será de nós?

Hoje, o dono precisa crer, mais do que nunca, na ressurreição. Precisa saber que a vida continua depois da morte, que a semente brota e volta a nascer. Precisa da Páscoa para conseguir depois aceitar o Natal, tem que acreditar que a estada no deserto acaba, ainda que dure por muito tempo, mas acaba e desemboca num lugar onde há leite e mel, onde as uvas são imensas e podemos nos embriagar de vinho e sol.

quinta-feira, 24 de março de 2005

Ponto de liquefação

A esperança não sobreviveu, não chegou a ver nem a boca da madrugada, quanto mais a luz do sol. Fez água, virou pó. Se as coisas se transformam, tomara que seja como na música, que não seja nem bom nem mal, apenas diferente.

O dono sai para outras terras, para outro mar. A voz aprenderá novas línguas, ecoará por sobre os montes e alcançará vales desconhecidos, cheios de vida, lugares de onde a terra sangra leite e mel. Sozinho, mas o barco acolhe naúfragos perdidos e ilhéus em busca de horizontes outros. Que sejam calmos os mares por onde ele for, que lhe seja favorável o vento e mansa a brisa. Que as marolas embalem novos sonhos, que as marés tragam a vida ao seu redor. Que os portos se lhe abram, cheios de coisas novas e desconhecidas, que lhe seja boa a acolhida qualquer que seja a terra em que ele desembarcar.

quarta-feira, 23 de março de 2005

Ponto de reversão

Esta voz cantará para todos os santos e orixás, suplicará aos poderosos e as humildes, porque amanhã há esperança. Amanhã, tudo pode ser igual antes. Não quero que amanhã seja um novo dia, quero que seja iguais aos dias que já vivemos, em especial os dias dos últimos quatro anos. Que assim seja.

segunda-feira, 21 de março de 2005

Funerais

No meio de janeiro, o avô do dono da voz encenou seu ato final neste mundo, tocou as últimas notas na sua gaita como se elas fossem os clarins anunciando o porvir. Foi um choque descomunal, abrupto, como se fosse o ladrão da noite quando todos se sentem seguros e confortáveis. O mundo tornou-se um lugar instável demais desde então.

Foi assim que se perdeu o elo com o passado, a história de onde viemos, o lastro da paixão pela música da alma de artista. No mês seguinte, o segundo funeral, o rompimento com o futuro que pacientemente esboçavam há quatro anos. Novamente, a violência sem aviso, o apocalipse sem as profecias anunciando que era chegado o fim dos tempos, e ela partiu para um sonho diferente onde não existia lugar para o dono nem para a voz.

Alijados do futuro e sem o passado para nos sustentar, resta agora esse hoje, o agora irreconhecível porque foi desfigurado, arrancaram o que tínhamos para enfrentá-lo. Esse presente de grego nós rejeitamos, não nos encontramos nele nem sabemos como atravessá-lo até que cheguem dias melhores.

domingo, 20 de março de 2005

Os sonhos são desejos reprimidos

O dono da voz sonhou com ela, mais de um vez, na mesma noite. Na primeira vez, ela surgia ao seu lado, o que, considerando a ausência instalada, já era uma grande e celebrada novidade. Eufórico, ele quis mais, e sonhou que ela voltava para ele. Imediatamente, os dias se fizeram mais calmos, ela de volta aninhada nos seus braços e esparramada no sofá. O sonho pode durar uma noite inteira, mas o estado lastimável do dono refez-se pela manhã: estava sozinho.

sábado, 19 de março de 2005

Prognóstico

"Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos." Apóstolo Paulo, na 2º carta aos coríntios, capítulo 13, versículo 5.


Vinte um dias depois. Os primeiros dias foram a fase do choque, da assimilação do fato. Depois, a negação, de fugir da raia, procurando encher a cabeça com outras coisas. Até que ela se impôs, soberana, arrebentando todas as colunas que davam uma falsa estabilidade à vida do dono. A tristeza e a solidão aumentaram, um certo desespero abafado, uma agústia de descobrir que não saber mais quem somos na nova ordem sentimental. A continuar nessa toada, o poço vai ficando mais e mais fundo, os dias mais escuros e as noites mais longas, intermináveis, principalmente depois que, com a cabeça no travesseiro, o dono da voz fica olhando para o teto, como se alguma luz fosse surgir para resgatá-lo. Mas a luz o deixou. E é difícil permanecer na fé, não porque nela é preciso acreditar naquilo que não se vê, mas sim porque é preciso seguir em frente sem alguém que lhe dava esperança. Sem fé, sem amor, sem esperança.

Recomendação médica: considerar a necessidade de acompanhamento psicológico.

quinta-feira, 17 de março de 2005

Vazio

Diga quem souber, que nem o dono nem a voz podem responder: o que é que preenchia a vida do dono antes disso? O que corria nas suas veias, quais os ruídos e perfumes que recuperavam as suas boas lembranças e alicerçavam os seus sonhos?

Alguém invadiu a casa pela varanda vazia e, depois de haver ceado, comido do pão e tomado do vinho, abandonou a festa. Antes, porém, trocou as fechaduras de todas as portas, de modo que ninguém pode mais acessar cômodo nenhum com as chaves antigas.

terça-feira, 15 de março de 2005

Reconstrução da cidade

A catástrofe deixou os escombros e os túmulos, onde descansam os sonhos do dono. Que descansem em paz e deixem-nos em paz. Eram sonhos de um futuro onde cabiam uma família, filhos, uma casa espaçosa e arejada numa cidade do interior. Na sala, haveria um sofá vermelho. As paredes teriam quadros, os quadros que ela pintou e de vez em quando pintava ainda. Haveria uma biblioteca, onde, antes das crianças nascerem e depois que elas se fossem atrás das suas próprias vidas, os dois passariam as tardes, principalmente aquelas regadas com chuvas de verão.

Na cozinha, fariam pão e dançariam passos desconjuntados, num eterno ensaio do que fariam um dia desses rodopiando no salão. Não teriam cachorro nem gato; talvez um peixe que gostasse quando tocassem o piano da sala.

Nada disso, porém, cabe mais nas novas casas da cidade reconstruída. As ruas serão outras, ninguém terá sofás vermelhos. Enquanto as casas não ficam prontas, tomam chuva, passam frio e acordam molhados de orvalho com o sol nascendo. Quando tudo estiver em pé outra vez, haverá uma festa, planejam os detalhes da comemoração mas nem sabem se viverão até lá. Vivem de esperança de que a vida será boa outra vez, mas não igual ao que era antes.

sexta-feira, 11 de março de 2005

Resoluções para uma vida nova

Saí da traquéia para anunciar que o dono da voz decidiu que é preciso continuar vivendo. Portanto, não aguardaremos posições definitivas, acomodações e coisas do tipo. Acertadas as devoluções da parte que cabe a cada um do latifúndio construído nos últimos quatro anos, a terra volta a ser cultivada. Só não sei ainda com o quê, mas isso pode aguardar a estação apropriada. Provavelmente a colheita não será tão boa como a dos últimos anos, mas é preciso viver. Encaremos isso como rotação de culturas, para aumentar a produtividade. No meio tempo, criaremos os bodes que apareceram na sala.

domingo, 6 de março de 2005

Coisas boas da vida

Nada como trabalhar num domingo de sol, uma semana depois de ter a sua vida virada pelo avesso. Sem nenhum plano objetivo para o futuro que não sentar e ver o que acontece, ele se divide agora em coisas que devem ser feitas e coisas que podem ser feitas para passar o tempo. Exemplo principal: estas mal traçadas linhas, que ele desistiu de escrever e repassou a tarefa para a voz. Diz que, além de não ter planos, anda sem idéias novas porque está aprisionado nos últimos quatro anos.

Eu não o culpo, porque, sendo parte dele, também me ressinto dos caros e fundamentais alicerces que o sustentavam. Nada muito digno de nota, mas essenciais para conseguirmos suportar a nós mesmos. Sozinhos, fica muito difícil acreditarmos na importância das nossas próprias vidas. Nós dois, pelo menos, só acreditamos em nós quando nossa existência é capaz de produzir de afetar, de preferência positivamente, alguém por aí.

Mas o galho é que esta voz também não vai conseguir remendar nada, até porque toda voz precisa de um ouvido para eventualmente ser eficaz. Esbarramos, então, no mesmo problema que nos trouxe até aqui, que é a falta de quem ouvia a voz e compreendia o dono da voz. Concordemos que não há solução possível para esse impedimento, a não ser que a peça que precisamos retorne, por sua livre e espontânea vontade. Impedidos de fazer aquilo que nos define, de viver através da alegria dos outros, como ficamos? Devemos sair em busca de novas platéias, como palhaços do circo? Ou abandonamos a trupe para nos transformarmos em quem não somos?

sexta-feira, 4 de março de 2005

Advertência inicial importante por parte da voz do dono

A voz sabe-se livre para dizer o que quiser, com ou sem a anuência do dono. Afinal, estamos num país livre, num território virtual onde, antes de tudo, há liberdade para se dizer o que vier na ponta da língua. A voz rejeita a razão como sua censora permanente, e exige o seu direito de denunciar os maus-tratos e a opressão que a subjuguem, ou a qualquer outro, inclusive o dono da voz.
A voz afirma ser necessária a celebração do verbo, seja ele feito carne ou em espírito que se propaga pelo ar, para nos redimir da opressão racional dos donos das vozes, aprisionadas pela lógica em traquéias úmidas e escuras.
Vida longa à voz e às palavras que ela faz ecoar!

Advertência inicial importante por parte do dono da voz

A voz costuma ser comportada e não fazer comentários a respeito do dono, que, por precaução, evita deixá-la dizer livremente o que quiser. O dono considera que a voz lhe pertence e, portanto, ela deve manifestar-se somente quando o que for dito traga algum benefício ao dono.

Ainda que lhe seja proveitoso, o dono entende que a voz deve atuar com moderação ao falar pelo dono. Caso a voz emita opinião regularmente e em pequenos intervalos de tempo, há indícios de que o dono esteja com problemas. Neste caso, por favor providencie atendimento médico ou psicológico ao dono.