terça-feira, 17 de novembro de 2009

Complexo de cigarra


O dia passeia como mulher olhando lojas: a cada vitrine, pára e olha o que tem, demoradamente, mesmo sem a menor intenção de comprar. O dono da voz hoje também passa o dia preguiçoso, pulando do livro para o jornal, do jornal para um disco, do disco para as notícias no que também vagarosamente vão surgindo nos grandes portais de informação da internet, sempre evitando cair na tentação do trabalho útil.

Há tempos vejo o dono da voz impaciente com tudo o que é trabalho real, este que as pessoas normais fazem para ganharem um salário no fim do mês. O dono da voz trabalha muito, mas sempre em coisas que não lhe rendem um só centavo: inventa novos romances, analisa a política internacional, faz arranjos de músicas obscuras, aprende essas linguagens de índio que as máquinas falam para colocar tudo o que faz na grande rede digital. Mas nada disso nunca é terminado, e portanto nada disso lhe rende dinheiro para viver. Parece um complexo de cigarra, que vive cantando, e isto também é um trabalho digno. Mas não é possível trabalhar sem receber, ainda mais sem ter a vida ganha.

Imaginem vocês o que é para uma voz ter que reclamar deste comportamento do dono, que vive cantando sem ter ao lado um chapéu onde pinguem uns cobres. Mas a garganta se cansa e precisa ser regada de vez em quando, e o estômago teima sempre em fazer um som grave fora de tempo quando contrariado.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Invertendo as festas

A marcha intolerante do tempo vai nos empurrando para o Natal mas, aqui em casa, costumamos inverter um pouco as festas cristãs: quando chega o Natal nos lembramos das músicas de Páscoa, e na Páscoa cantamos as canções que falam do nascimento de Cristo. Seguindo esta heresia litúrgica, o dono da voz resolveu ressuscitar este espaço, achando que é mais um nascimento do que ressurreição, porque três anos não são três dias.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Pausas

As mãos do dono da voz não são mais as mesmas. Destreinadas, já não podem mais correr velozes pelo teclado. Os dedos carregam um peso desconhecido, se atrapalham e erram a posição das teclas. Já não sabem saltar de um ponto ao outro com precisão: a mão esquerda se sai um pouco melhor quando se limita a cantar oitava acima e abaixo, quando faz o que é mais comum. Mas é lenta, incapaz de acompanhar com justiça a melodia. E não só as mãos, mas o cérebro também desacostumou-se a corrigir a rota dos dedos, a compreender o relevo harmônico do campo onde correm as notas da música e proibir os movimentos em falso, os pisões dos dedos médios nos pés das teclas que deveriam ficar quietas, e não controla mais o rebelde anular.

As pausas são mais necessárias agora: os dedos se cansam, os olhos não mais enxergam, num golpe de vista, todas as entrelinhas. O ritmo desacelera, algumas notas se perdem porque há que se priorizar o que pelo menos deixa a música reconhecível. Mais pausa: é preciso pensar para que lado cada mão vai correr, que dedos sobem e quais descem, quais armam o bote para o próximo acorde, a flexão do pulso, tudo é mais difícil agora do que já foi antes.

Então sobre o dono vem o silêncio. Já que as mãos não lhe deixam mais cantar, tornou-se calado. Vai já se acostumando para, quando ficar velho, não lamentar a falta da música.