terça-feira, 10 de outubro de 2006

Pausas

As mãos do dono da voz não são mais as mesmas. Destreinadas, já não podem mais correr velozes pelo teclado. Os dedos carregam um peso desconhecido, se atrapalham e erram a posição das teclas. Já não sabem saltar de um ponto ao outro com precisão: a mão esquerda se sai um pouco melhor quando se limita a cantar oitava acima e abaixo, quando faz o que é mais comum. Mas é lenta, incapaz de acompanhar com justiça a melodia. E não só as mãos, mas o cérebro também desacostumou-se a corrigir a rota dos dedos, a compreender o relevo harmônico do campo onde correm as notas da música e proibir os movimentos em falso, os pisões dos dedos médios nos pés das teclas que deveriam ficar quietas, e não controla mais o rebelde anular.

As pausas são mais necessárias agora: os dedos se cansam, os olhos não mais enxergam, num golpe de vista, todas as entrelinhas. O ritmo desacelera, algumas notas se perdem porque há que se priorizar o que pelo menos deixa a música reconhecível. Mais pausa: é preciso pensar para que lado cada mão vai correr, que dedos sobem e quais descem, quais armam o bote para o próximo acorde, a flexão do pulso, tudo é mais difícil agora do que já foi antes.

Então sobre o dono vem o silêncio. Já que as mãos não lhe deixam mais cantar, tornou-se calado. Vai já se acostumando para, quando ficar velho, não lamentar a falta da música.

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