As mãos do dono da voz não são mais as mesmas. Destreinadas, já não podem mais correr velozes pelo teclado. Os dedos carregam um peso desconhecido, se atrapalham e erram a posição das teclas. Já não sabem saltar de um ponto ao outro com precisão: a mão esquerda se sai um pouco melhor quando se limita a cantar oitava acima e abaixo, quando faz o que é mais comum. Mas é lenta, incapaz de acompanhar com justiça a melodia. E não só as mãos, mas o cérebro também desacostumou-se a corrigir a rota dos dedos, a compreender o relevo harmônico do campo onde correm as notas da música e proibir os movimentos em falso, os pisões dos dedos médios nos pés das teclas que deveriam ficar quietas, e não controla mais o rebelde anular.
As pausas são mais necessárias agora: os dedos se cansam, os olhos não mais enxergam, num golpe de vista, todas as entrelinhas. O ritmo desacelera, algumas notas se perdem porque há que se priorizar o que pelo menos deixa a música reconhecível. Mais pausa: é preciso pensar para que lado cada mão vai correr, que dedos sobem e quais descem, quais armam o bote para o próximo acorde, a flexão do pulso, tudo é mais difícil agora do que já foi antes.
Então sobre o dono vem o silêncio. Já que as mãos não lhe deixam mais cantar, tornou-se calado. Vai já se acostumando para, quando ficar velho, não lamentar a falta da música.
terça-feira, 10 de outubro de 2006
sábado, 3 de junho de 2006
Viajar
"Toda estrada leva a algum lugar
mesmo quando não seja onde se quer ir" (Sérgio Pimenta, Viajar)
Ele não sabe muito bem o que irá fazer durante um mês inteiro, o que o aguarda em seu destino. A única coisa que ele tem certeza é de que vai. Talvez volte animado, pronto para recomeços e novos projetos. Talvez fique lá, quem pode dizer o que será de nós quando o dia chegar, isso se a noite der passagem?
A estrada vai para o norte, mas não o norte que ele queria conhecer. Vai para um norte onde parece que ninguém mais enxerga matizes, sombras e espaços abertos. Mas é algum lugar, e por isso pega a estrada sem culpa nenhuma, pois não tem precisão de voltar. E, é bem verdade, não tem nem necessidade de ir também, mas faz da estrada o rito de passagem, o intervalo entre um lugar e outro, a travessia que liga o ontem e o hoje que virá depois. Vai com a mala um pouco cheia do que ele é, e um pouco vazia, que é o espaço do que ele vai ser.
No seu destino, ele não é amigo do rei, apenas do mendigo que vai dividir com ele a comida que tiver, um pedaço de chão e a janela para o mundo. E ambos sairão pela noite em busca deles mesmos, como se quem eles realmente são está sentado em algum bar que não sabem qual é, e vasculharão a cidade, e sentarão na calçada quando cansarem de procurar a si mesmos, e voltarão rindo das outras pessoas que viram.
mesmo quando não seja onde se quer ir" (Sérgio Pimenta, Viajar)
Ele não sabe muito bem o que irá fazer durante um mês inteiro, o que o aguarda em seu destino. A única coisa que ele tem certeza é de que vai. Talvez volte animado, pronto para recomeços e novos projetos. Talvez fique lá, quem pode dizer o que será de nós quando o dia chegar, isso se a noite der passagem?
A estrada vai para o norte, mas não o norte que ele queria conhecer. Vai para um norte onde parece que ninguém mais enxerga matizes, sombras e espaços abertos. Mas é algum lugar, e por isso pega a estrada sem culpa nenhuma, pois não tem precisão de voltar. E, é bem verdade, não tem nem necessidade de ir também, mas faz da estrada o rito de passagem, o intervalo entre um lugar e outro, a travessia que liga o ontem e o hoje que virá depois. Vai com a mala um pouco cheia do que ele é, e um pouco vazia, que é o espaço do que ele vai ser.
No seu destino, ele não é amigo do rei, apenas do mendigo que vai dividir com ele a comida que tiver, um pedaço de chão e a janela para o mundo. E ambos sairão pela noite em busca deles mesmos, como se quem eles realmente são está sentado em algum bar que não sabem qual é, e vasculharão a cidade, e sentarão na calçada quando cansarem de procurar a si mesmos, e voltarão rindo das outras pessoas que viram.
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