terça-feira, 10 de outubro de 2006

Pausas

As mãos do dono da voz não são mais as mesmas. Destreinadas, já não podem mais correr velozes pelo teclado. Os dedos carregam um peso desconhecido, se atrapalham e erram a posição das teclas. Já não sabem saltar de um ponto ao outro com precisão: a mão esquerda se sai um pouco melhor quando se limita a cantar oitava acima e abaixo, quando faz o que é mais comum. Mas é lenta, incapaz de acompanhar com justiça a melodia. E não só as mãos, mas o cérebro também desacostumou-se a corrigir a rota dos dedos, a compreender o relevo harmônico do campo onde correm as notas da música e proibir os movimentos em falso, os pisões dos dedos médios nos pés das teclas que deveriam ficar quietas, e não controla mais o rebelde anular.

As pausas são mais necessárias agora: os dedos se cansam, os olhos não mais enxergam, num golpe de vista, todas as entrelinhas. O ritmo desacelera, algumas notas se perdem porque há que se priorizar o que pelo menos deixa a música reconhecível. Mais pausa: é preciso pensar para que lado cada mão vai correr, que dedos sobem e quais descem, quais armam o bote para o próximo acorde, a flexão do pulso, tudo é mais difícil agora do que já foi antes.

Então sobre o dono vem o silêncio. Já que as mãos não lhe deixam mais cantar, tornou-se calado. Vai já se acostumando para, quando ficar velho, não lamentar a falta da música.

sábado, 3 de junho de 2006

Viajar

"Toda estrada leva a algum lugar
mesmo quando não seja onde se quer ir" (Sérgio Pimenta, Viajar)

Ele não sabe muito bem o que irá fazer durante um mês inteiro, o que o aguarda em seu destino. A única coisa que ele tem certeza é de que vai. Talvez volte animado, pronto para recomeços e novos projetos. Talvez fique lá, quem pode dizer o que será de nós quando o dia chegar, isso se a noite der passagem?

A estrada vai para o norte, mas não o norte que ele queria conhecer. Vai para um norte onde parece que ninguém mais enxerga matizes, sombras e espaços abertos. Mas é algum lugar, e por isso pega a estrada sem culpa nenhuma, pois não tem precisão de voltar. E, é bem verdade, não tem nem necessidade de ir também, mas faz da estrada o rito de passagem, o intervalo entre um lugar e outro, a travessia que liga o ontem e o hoje que virá depois. Vai com a mala um pouco cheia do que ele é, e um pouco vazia, que é o espaço do que ele vai ser.

No seu destino, ele não é amigo do rei, apenas do mendigo que vai dividir com ele a comida que tiver, um pedaço de chão e a janela para o mundo. E ambos sairão pela noite em busca deles mesmos, como se quem eles realmente são está sentado em algum bar que não sabem qual é, e vasculharão a cidade, e sentarão na calçada quando cansarem de procurar a si mesmos, e voltarão rindo das outras pessoas que viram.