sábado, 30 de abril de 2005

"A Rita levou meu sorriso..." (comentada)

A Rita
Chico Buarque - 1965

A Rita levou meu sorriso
No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
E o que me é de direito
Arrancou-me do peito
E tem mais
Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Que papel!
Uma imagem de São Francisco
E um bom disco de Noel

A Rita matou nosso amor
De vingança
Nem herança deixou
Não levou um tostão
Porque não tinha não
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meu pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo
Um violão
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O violão só não ficou mudo porque ele não tocava. Ela tocava violão, ele tocava piano. O piano da sua casa desafinara, era antes só um porta-porta-retrato porque ele tocava muito pouco enquanto estiveram juntos. Depois, ele precisava preencher o tempo que dedicava àquela que levou os seus vinte anos (ou pelo menos boa parte deles), e voltou a fazer o que não fazia há muito: tocar piano, escrever bobagens em caderninhos, andar sem rumo pela rua.

O amor não morreu de vingança, caiu de maduro. Maduro, mas não podre, acho. Os discos, que não eram de Noel (os de Noel já tinham sido devolvidos, pouco antes, num ato de encerramento antecipado), ela devolveu. Ele só não achou ainda outros planos, porque não sabe mais conviver com ele mesmo. Não sabe de é a ausência dela ou a sua presença mais viva que o incomoda e lhe dá um sentimento de estar peridido na feira de domingo, sem saber nem para onde correr para ficar em segurança. Pisam-lhe os pés, esbarram nele com carrinhos, a mão involuntariamente se espeta num abacaxi.

É ao mesmo tempo uma liberdade excessiva e uma amarra, que o segura onde está. Não há mais empecilhos, ele pode ir para onde quiser sem se preocupar com muita coisa. Pode ser escritor, gari, pode até ser músico, que importa o futuro? Mas e coragem para passos incertos, agora que não há mais certeza de nada? Ele acaba ficando no lugar, quieto, como a sua mãe tinha lhe ordenado quando moleque: "se você se perder de mim, fica onde está, que eu volto para te buscar". Ninguém virá, ele sabe. Mas é só o que ele pode fazer, pelo menos até a feira acabar, a bagunça ir embora e as barracas deixarem a sujeira para trás.

Um comentário:

  1. Senti saudade da solidão da feira e da tua separ'ação dolorosa sem ao menos os conhecer.

    Boa leitura.

    Gracias!

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