quinta-feira, 21 de julho de 2005

Nova Iorque (III) – 20 de junho

Há um interminável jogo acontecendo nas ruas dessa cidade em que, certa vez, existiram duas torres de Babel, tamanha a confusão lingüística que se ouve em qualquer canto. Hoje eu encontrei um grupo de meninas portuguesas e uma família brasileira paulistana, que falavam uma língua que atende pelo mesmo nome, a língua de Camões e Machado de Assis, mas cada um lá da sua maneira. Ouvi também duas moças falando numa língua que me soou eslava, e uma delas se exaltava tanto que todo o trem tentava, inutilmente, descobrir a razão de tanta raiva. Dois homens que atravessaram a avenida comigo quando deixei o metrô falavam outra língua que não arrisco qual seja, mas aposto que é parente da que a mulher irritada gritava no vagão. Ouvi também uma francesa que procurava um livro, a duas estantes de distância da que eu estava quando em visita proveitosa a uma imensa livraria. E mais o espanhol e o inglês, as duas línguas alicerces da babel de Nova Iorque, sem contar o velhinho lendo um jornal em chinês ou japonês, aquela coalhada de ideogramas se esparramando por toda a página sem indicação nenhuma de por onde se começa e se termina de ler.

Sei também que, por essas ruas, se conversa em italiano, alemão, grego, polonês e russo, e na infinidade de dialetos africanos, eslavos e asiáticos e, ainda que às escondidas, árabe, todos os sons que estão associados à feições, roupas e cabelos característicos. Todos se valem de serem incompreensíveis à maioria dos que os cercam, sentem-se anônimos, são um segredo quase inviolável as suas palavras. Até mesmo os que usam o inglês às vezes falam como se os entendessem só um interlocutor escolhido, porque as palavras que soltam pela rua revestem-se de uma invisibilidade sagrada como a de Deus, só podendo enxergar os seus significados aqueles que receberam a graça de serem previamente eleitos, os que sabem professar aquela fé.

Na confusão estabelecida muito antes de erigirem as torres que caíram, a voz se diverte invadindo, até mesmo sem querer, esses rituais — ou pelo menos alguns deles, dos que as orelhas são capazes de captar e que são também um pouco dela, porque ela também sabe articulá-los. Nem percebem, mas quem está ali também sabe rezar, um pouco que seja, aquelas preces que eles fazem. E, de vez em quando, se o dono da voz se sente mais sozinho, a garganta ecoa os mesmo sons, abandonando o disfarce apenas para lembrar como se conversa com alguém.

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